segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Os justiceiros, o regresso da justiça privada e da barbárie

o começo de fevereiro, redes sociais, jornais e sites foram tomados pela imagem de um adolescente negro e nu, preso a um poste do bairro do Flamengo, zona sul do Rio de Janeiro, por uma corrente de bicicleta. Três dias depois um homem é executado à luz do dia em uma rua movimentada de Belford Roxo, na Baixada Fluminense.Outro jovem foi amarrado a um poste e agredido após uma tentativa de assalto em Itajaí, em Santa Catarina. Os autores se autoproclamaram “justiceiros” e fizeram o papel da polícia, ao prendê-los, e da Justiça, ao julgá-los e definir as penas a serem aplicadas.

Muitas pessoas passaram a defender nas redes sociais a ação destes justiceiros. Vale salientar que primitivamente, O Estado era fraco e limitava-se a definir direitos reconhecidos pelo órgão estatais defendê-los e realizá-los com os meios de que dispunham. Eram os tempos da justiça privada ou justiça pelas próprias mãos, que, naturalmente, era defeituosa e incapaz de gerar a paz social almejada por todos. Com o fortalecimento do Estado e com o aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito, a justiça privada, já desacreditada pela sua ineficácia, foi substituída pela Justiça Pública.

O estado assumiu para si o encargo e o monopólio de definir o direito concretamente aplicável diante das situações litigiosas, bem como o de realizar esse mesmo direito, se a parte recalcitrante recusar-se a cumprir espontaneamente o comando concreto da lei. Somente em alguns casos é possível a defesa dos direitos pelas próprias mãos da parte. No direito civil temos o artigo 1.210 § 1º do Código Civil que estabelece” O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse”.

No Código Penal temos o crime de exercício arbitrário das próprias razões previsto no artigo 345 que reza: “Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite (legítima defesa, estado de necessidade, etc)”. Trata-se de um crime contra a administração da justiça, porque o sujeito menospreza o Poder Judiciário. Configura exercício arbitrário das próprias razões a retenção de paciente em hospital, até o pagamento das contas, utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer, colocar na rua os bens do inquilino que não estava pagando os aluguéis, apropriar-se de bens da empresa porque o patrão não lhe pagou direitos trabalhistas, dentre outros.

Para a antropóloga Alba Zaluar, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o fenômeno dos justiceiros não é novo, pois já ocorreu em décadas passadas. Ela acredita que “vamos caminhar para a barbárie” caso não se efetive “uma relação de cooperação entre a sociedade e a polícia”. O professor de Sociologia e Antropologia Michel Misse, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), alerta que a reação favorável a essas práticas na sociedade é muito preocupante. “É preciso compreender que a sobrevivência dessa ideia de justiça como vingança, uma ideia pré-moderna, é absurda, e que não é uma saída aos problemas. Precisamos esclarecer a importância da lei, ou estamos fadados ao inferno”, argumenta.

Para Jaqueline Muniz, antropóloga e cientista política e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, é crucial esclarecer que o justiçamento nada mais é do que uma “apropriação privatista dos mecanismos de policiamento. Trata-se de um policiamento ilegal e clandestino, idêntico às milícias e ao patrulhamento das favelas exercidos por narcotraficantes”.

Quem manifesta opinião favorável ao justiçamento também está sujeito a punição. O Código Penal que em seu artigo 286 prevê detenção de três a seis meses, ou multa, por incitação ao crime e apologia ao crime ou ao criminoso, inclusive em meios de comunicação e redes sociais. Quem apoia os justiceiros não se dá conta de que pode ser a próxima vítima. Parte de setores da opinião pública precisa ter cautela em não transformar “justiceiros” em policiais e juízes e que julgamentos sejam realizados na praça pública. Se houver crime, se houver corrupção, os responsáveis devem ser julgados, mas de acordo com as normas do Estado Democrático de Direito. É evidente que precisamos buscar soluções para a segurança pública. Todavia, apoiar justiceiros fere de morte o Estado Democrático de Direito, a Justiça Pública, o Poder Judiciário, o ordenamento jurídico e a democracia.

ADVOGADO ABDIAS ABRANTES (1)

Abdias Duque de Abrantes
Jornalista, advogado e pós-graduado em Direito Processual do Trabalho pela Universidade Potiguar (UnP), que integra a Laureate International Universities

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